Eudes Quintino de Oliveira Júnior
De um lado, a comunidade científica do Brasil, representada pelos pesquisadores, passa a ter mais autonomia e segurança para ingressar em plataforma de terapias avançadas em busca de novos tratamentos. De outro, as indústrias farmacêuticas terão incentivo em investir com mais consistência para atingir os objetivos propostos.
domingo, 1 de março de 2020
Percebe-se claramente que o avanço da ciência médica, em todas as áreas até então exploradas, traduz-se em uma realidade incontestável de bem-estar e conforto para o ser humano, seu destinatário exclusivo. Apesar de atingir gradativamente cada passo, a nova etapa de conquista alcança um espaço para uma breve reflexão e vislumbra à frente outros obstáculos a serem vencidos. É o que se espera de uma ciência com dinamismo constante e sequencial e não poderia ser diferente num mundo articulado por biotecnologias cada vez mais impactantes.
O resultado de tanta evolução vem refletido na nova era que os cientistas chamam de “terapias avançadas” e, seguindo a recomendação dos países mais evoluídos mundialmente, a ANVISA aprovou um marco regulatório significativo, com a finalidade de modificar o DNA de pacientes portadores de doenças raras ou de alta complexidade, justamente quando não há qualquer suporte terapêutico para eles. Até mesmo com alcance em alguns tipos de câncer, com a intenção de alterar geneticamente o sistema defensivo para combater o crescimento desordenado das células cancerígenas.
Com tal proposta de pesquisa fica bem claro que o objetivo é estudar o ser humano dentro da sua complexidade interna, principalmente após o sequenciamento do DNA, marco importante que possibilitou obter as informações genéticas, como a linha hereditária e as propriedades bioquímicas do ser humano. Seria guardadas as proporções, a advertência do nosce te ipsum, inscrito no Oráculo de Delfos, no sentido de que o homem deve desbravar biologicamente seu interior em busca de suas informações genéticas, estampando-as num mapeamento para identificar as mutações em seu perfil genético. O segredo da vida, desta forma, em outras palavras, reside no autoconhecimento celular e nele está contida a terapia necessária para a restauração pretendida.
Quando se fala em doenças raras deve-se ter em mente que são crônicas, progressivas e incapacitantes, sendo que grande maioria delas não tem cura. Daí o tratamento oferecido é diversificado, mas tão somente para aliviar os sintomas ou retardar seu aparecimento. No Brasil há uma estimativa de 13 milhões de pessoas diagnosticadas com doenças raras1, classificadas em dois grupos: as que são provenientes de origem genética e as de origem não genética.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos”. Há uma estimativa de 6000 a 8000 casos de doenças órfãs já catalogadas em todo mundo. Como não há interesse na realização de pesquisas com estudos clínicos para os portadores destas doenças, em razão do número diminuto de pacientes e o elevado investimento financeiro, o diagnóstico é sempre difícil e demorado, comprometendo, desta forma, qualquer tratamento que seja adequado para reduzir a progressão da doença. E o resultado é angustiante tanto para o paciente, como também para seus familiares, que se rendem diante da carência de recursos terapêuticos.
Como a maior parte destas doenças tem origem na genética, a medida da ANVISA veio em boa hora permitir as pesquisas envolvendo terapia celular e terapia com células-tronco. Cabe aqui a observação que no ano de 2019 um paciente da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, que participava de um estudo envolvendo terapia celular, praticamente foi curado de um linfoma em estágio adiantado. Não foi possível, no entanto, ultimar a pesquisa em razão da sua morte, por um acidente doméstico.
De um lado, a comunidade científica do Brasil, representada pelos pesquisadores, passa a ter mais autonomia e segurança para ingressar em plataforma de terapias avançadas em busca de novos tratamentos. De outro, as indústrias farmacêuticas terão incentivo em investir com mais consistência para atingir os objetivos propostos.
A Bioética, por sua vez, levando-se em consideração de que a terapia gênica é o último recurso disponível – the last try dos americanos – e considerando os riscos previsíveis na correção da trajetória genética, numa ponderação ética, pende para os prováveis e expressivos benefícios a serem oferecidos aos seres humanos. É certo que se abre uma enorme esperança para a humanidade em apostar na terapia gênica que, pela sua potencialidade, elimina o mal pela raiz ao corrigir defeito genético do ser humano.
Com a acuidade que lhe é particular, o bioeticista Moser, antes mesmo de qualquer cogitação a respeito, sentenciou: “Acontece, porém, que justamente por isso, quando hoje se fala de terapia associada a doenças genéticas, logo se tende a pensar em terapia gênica propriamente dita e, com ela, na engenharia genética. Tudo isso contribui tanto para criar medos infundados quanto ilusões também infundadas. Por essa razão convém dar passos sucessivos, observando que a terapia gênica é a que se apresenta como última possibilidade, quando não há o que se fazer pela medicina convencional”.2
1 Segundo estimativa da Associação das Indústrias Farmacêuticas de Pesquisa – Interfarma
2 Moser, Antônio. Bioetecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis, RJ : Vozes, 2004, p. 233.
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da UNORP, advogado.