Uma análise sobre o sigilo médico e a relação médico-paciente em casos criminais
Olá, caro leitor! Na coluna de hoje vamos falar sobre um tema que desperta muita curiosidade e dúvidas: a relação entre o sigilo médico e o processo penal. Preparado? Vamos lá!
Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu trancar uma ação penal que investigava um caso de aborto provocado pela própria gestante. A decisão foi tomada após a constatação de que houve quebra do sigilo profissional entre médico e paciente durante o processo. O médico, que suspeitou que a paciente teria feito uso de remédio abortivo, acionou a Polícia Militar e encaminhou o prontuário da paciente para a autoridade policial, com o objetivo de comprovar suas suspeitas. Além disso, o profissional de saúde foi arrolado como testemunha no processo, o que violou o artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) e gerou a nulidade das provas reunidas nos autos. Com a decisão, os autos devem ser remetidos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina para que os órgãos tomem as medidas que entenderem cabíveis.
Essa decisão ensejou muitas indagações: quando o médico pode quebrar esse dever de sigilo? O que deve prevalecer em caso de conflito entre o dever de sigilo e a necessidade de apuração e investigação criminal? Como lidar com essas situações? Vamos entender melhor.
O sigilo médico é um pilar fundamental na relação médico-paciente. Desde o século V a. C o considerado pai da medicina, Hipócrates, já dizia que “Aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, conservarei inteiramente secreto.” Ele garante que as informações compartilhadas entre os dois sejam tratadas com o máximo de confidencialidade.
É importante destacar que o sigilo médico é uma obrigação estabelecida tanto pelo Código de Ética Médica quanto pelo Código de Processo Penal. É vedada a divulgação de dados do paciente que possa acarretar a instauração de processo penal (art. 73 do CEM), sendo proibidos os médicos de depor sobre fatos que devam guardar segredo em razão da profissão. (art. 207 CPP). Por isso, no caso julgado pelo STJ acima mencionado, entendeu-se que o médico violou a norma ética e cometeu infração, já que graças a sua atuação a paciente foi processada.
Para além de ser uma norma ética, algumas leis garantem o sigilo dos dados de saúde dos pacientes. É o caso da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018 (LGPD) que considera os referidos dados como “sensíveis” e exige o consentimento expresso do titular para o tratamento dos dados ou o consentimento de um dos pais ou representante legal, no caso de crianças e adolescentes. Todas essas normas éticas e jurídicas se fundamentam no art. 5º da Constituição Federal que protege a intimidade e a privacidade como direito fundamental de todos.
No entanto, existem algumas exceções em que o sigilo pode ser quebrado, como em casos em que há autorização do próprio paciente, justa causa e dever legal. (Art. 66 da Lei de Contravenções Penais que determina se tratar de ilícito se o médico não comunicar crime de ação pública praticado por terceiro, do qual tomou conhecimento).
A justa causa ocorre quando, por exemplo, há risco de morte. Nessa situação, o profissional de saúde pode optar por quebrar o sigilo médico para proteger a vida e garantir a segurança de todos os envolvidos. Maus tratos e violência, por exemplo, contra crianças e adolescentes, casos de violência doméstica podem ser enquadrados na exceção.
Outra situação é quando houver o dever legal de notificação. Algumas doenças requerem que os médicos notifiquem as autoridades de saúde, mesmo que isso resulte na violação do sigilo médico. Como exemplo, podemos citar o caso de pais que insistem em levar o filho, diagnosticado com meningite meningocócica para a escola, sem comunicar o fato à direção. Essa ação é essencial para garantir o controle e a prevenção de doenças, portanto é questão de saúde pública, preservação da vida e da saúde de terceiros, além de se tratar de crime a prática de ato capaz de transmitir moléstia grave a outrem (art. 131 do Código Penal).
Note-se que a Lei nº 14.289/2022 veda a divulgação, pelos agentes públicos ou privados, de informações que permitam a identificação da condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose, nos âmbitos dos serviços de saúde; estabelecimentos de ensino; locais de trabalho; Administração Pública; segurança pública; processos judiciais; mídia escrita e audiovisual . Porém, sempre que a sociedade ou terceiras pessoas estiverem em risco, o profissional de saúde deve sopesar os valores envolvidos para fazer prevalecer o interesse público.
Portanto, em regra, o médico precisa sempre priorizar a preservação do sigilo dos dados de saúde dos pacientes, exceto nos casos previstos em lei, sem haver qualquer distinção se o serviço que está prestando é em estabelecimento privado ou público. A regra é a mesma.
Por outro lado, é importante que os pacientes sejam informados sobre seus direitos de privacidade e confidencialidade. Eles devem ser informados sobre como seus dados médicos serão usados e com quem serão compartilhados. Os pacientes também têm o direito de acessar suas informações médicas e solicitar correções ou exclusões, se necessário.
Em resumo, o sigilo médico é uma garantia essencial para a relação de confiança entre médico e paciente e deve ser respeitado. O paciente não pode ter receio de relatar ao médico suas doenças, sob pena de pôr em risco a atuação do profissional e a sua própria saúde e vida. Contudo, há situações específicas em que a quebra do sigilo é necessária para cumprir exigências legais ou proteger vidas. Nessas horas, os médicos devem se socorrer dos comitês de bioética (daí a importância de fomentar a criação dos mesmos) e dos conselhos regionais, para garantir a melhor solução para todos os envolvidos.
E aí, o que achou do nosso papo de hoje? Esperamos ter esclarecido suas dúvidas sobre esse tema tão importante. Até a próxima!
*Dra. Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz
Juiza de Direito do TJ-PE. Pos doutora em Biodireito pela Universidade de Salamanca. Vice presidente do Comitê de Saúde TJPE/CNJ . Presidente da Comissao Nacional de Biodireito da ADFAS. Membro da Comissao de Direito Médico do CFM.