A 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, em votação unânime, autorizou a interrupção de uma gravidez em que se comprovou com laudo médico a má formação fetal, acarretando, consequentemente, a inviabilidade da vida extrauterina. Em primeiro grau, em decisão proferida em comarca do interior de São Paulo, foi negada a pretensão da gestante.
O relator, desembargador Edison Tetsuzo Namba, foi incisivo em decidir que o questionamento não possibilita a aplicação do rol permissivo de abortamento previsto no artigo 128 do Código Penal, uma vez que referido tipo penal pressupõe a potencialidade de vida fora do útero, enquanto, pelo laudo médico apresentado, foi apontada a total impossibilidade de vida extrauterina. Feita tal leitura jurídica, concluiu pela aplicação, por analogia, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), já julgada pelo Supremo Tribunal Federal, conforme ponderação feita pelo arguto relator:
No entanto, o caso é análogo ao referido julgado, no tocante à comprovada inviabilidade de vida longe do ventre materno, uma vez que as malformações do feto gestado pela paciente, agnesia bilateral (ausência de ambos os rins) e anidrâmnio (ausência do líquido amniótico), são incompatíveis à possibilidade de sobrevida.1
O tema é não só de alta indagação jurídica, mas também de interesse bioético. Busca-se, na realidade, conhecer o status do embrião na legislação brasileira. O embrião, como é sabido, carrega a tutela protetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, dogma constitucional irretocável que, pela melhor hermenêutica, encarta a mais lata interpretação possível, embora não seja ele ainda considerado pessoa humana. Mas, o Código Civil, em seu artigo 2º, é taxativo em afirmar: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Nesta linha de raciocínio fica acentuado que o embrião, além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro. No Brasil há a proposta legislativa traduzida pelo PL 478, que tramita desde 2007, denominada Estatuto do Nascituro e, quando for levada a debate perante o Congresso Nacional, certamente provocará calorosas discussões a respeito da natureza jurídica do embrião e incitará inúmeras divergências religiosas, médicas, jurídicas, bioéticas e com outras disciplinas afinadas com a questão.
No caso ora debatido o que se discute é se a gestante de feto com malformação congênita pode se valer da antecipação terapêutica do parto. A resposta imediata sugere que, em havendo demonstrativo probatório e inequívoco da deformidade que inviabiliza a vida extrauterina e, atendida a autonomia da gestante e do seu parceiro, a via escolhida vem revestida da legalidade para interromper a gravidez, independentemente do tempo de gestação.
É interessante frisar que tal previsão foi incorporada no artigo 128, inciso III, do Anteprojeto do Código Penal em razão da decisão da Corte Maior, que permite o procedimento em caso de comprovação de feto anencefálico, ainda não incorporada ao estatuto penal, autoriza mais uma causa de abortamento, in verbis: Se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos”.
O importante é que haja spes vitae, quer dizer, nascer com expectativa de vida, observando que às causas permissivas consistentes em salvar a vida da gestante e quando a gravidez for proveniente de estupro, não se aplicam tal exigência.
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1 TJ-SP autoriza interrupção de gravidez de feto sem chance de vida. Conjur.
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da UNORP, advogado.