João Roberto Oba
Livia Maria Armentano Koenigstein Zago
A revitimização acontece principalmente em uma esfera institucional, a exemplo da vítima de abuso sexual que, após o sofrimento da violência própria do ato, é interrogada de maneira desumana de modo a lembrar, de maneira dolorosa, os momentos em que esteve sob o jugo do agressor.
quarta-feira, 02 de setembro de 2020
A REDE BIOÉTICA BRASIL vem a público denunciar como afrontosas aos Direitos Humanos Fundamentais e aos Princípios da Bioética as determinações contidas na Portaria 2282, de 27 de agosto de 2020, do Ministério da Saúde, pelos motivos abaixo expostos: No dia 27 de agosto passado, sob o pretexto de “dispor sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS–, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 2282 , pela qual a mulher e a condição feminina foram submetidas e expostas a tratamento evocativo de tortura, desrespeitoso a seus direitos humanos fundamentais e específicos e à sua dignidade enquanto pessoa humana completa, mesmo na hipótese de ser civilmente incapaz. Primeiramente é de destacar-se que os “Considerando” da Portaria 2282, reflexivos da competência do Ministério da Saúde sobre o disciplinamento das medidas assecuratórias da licitude do processo de interrupção da gravidez, sobre as hipóteses legais permissivas desta interrupção, sobre os crimes de estupro, inclusive de vulneráveis e sobre a necessidade de segurança jurídica aos profissionais da saúde envolvidos no procedimento, não guardam conexão com o texto da norma. De fato, o texto da Portaria tem como único escopo expor a mulher – já em situação dolorosíssima – à desconsideração das garantias constitucionais de sua intimidade, privacidade e imagem, a situações de constrangimento extremo e à transformação do médico, de confessor, em delator. O Código Penal, por motivos humanitários e sentimentais, permite o aborto em casos de gravidez resultante de estupro, desde que praticado por médico e com o consentimento da mulher (art. 128,II). O amparo, o resguardo e o refúgio que a mulher em situação de violência deve receber restou escamoteado por esta Portaria, destacadamente nas suas seguintes determinações:
Obrigatoriedade de elaboração de Boletim de Ocorrência: a “Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”, que desobrigava as vítima estupro da apresentação do Boletim de Ocorrência para sua submissão ao procedimento de interrupção da gravidez no âmbito do SUS foi revogada pela Portaria 2282, que atribuiu ao médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro o dever de proceder à notificação (art. 1º) .
O desencadeamento de uma apuração policial, por si só, por mais rubricas de sigilo que a acompanhe, significa ingerência à intimidade e à privacidade, valores que a vítima, mesmo por intermédio de representante, pode entender sobrepujar à investigação policial, pelo menos naquele momento. Até como forma de preservação de eventual retaliação por parte do agressor. A obrigatoriedade da notificação, por outro lado, levará a paciente a revitimização, fenômeno decorrente do sofrimento continuado ou repetido da vítima de um ato violento, após o encerramento deste, que pode ocorrer instantaneamente, dias, meses ou até anos depois. A revitimização acontece principalmente em uma esfera institucional, a exemplo da vítima de abuso sexual que, após o sofrimento da violência própria do ato, é interrogada de maneira desumana de modo a lembrar, de maneira dolorosa, os momentos em que esteve sob o jugo do agressor. Além disso, após à comunicação a autoridade policial a vítima será encaminhada ao IML para realização do exame de conjunção carnal, o que implica em nova revitimização. O questionamento importante, aqui, é: qual a real relevância da comunicação à autoridade policial?
A Portaria cria uma obrigação à equipe médica, de informar à vítima acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada (art. 8º).
Esta obrigação de informar, não pode ser criada por intermédio de Portaria, já que se trata de matéria de reserva legal, sendo inconstitucional a exigência, a quem quer que seja, de ação ou omissão que não decorrente de lei. Outrossim, a obrigação da vítima saber sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia não tem outra justificativa que expressar um juízo de desaprovação a uma conduta legalmente chancelada. Fato que cria uma situação de extremo embaraço e constrangimento para a equipe médica, cuja conduta ética sempre está dirigida e determinada à impessoalidade quanto à valoração das decisões dos pacientes. E ditada pela conduta ético-jurídica do sigilo profissional e da confidencialidade, a teor do disposto nos artigos 73 do Código de Ética Médica e 154 do Código Penal. Para a mulher, por sua vez, o objetivo da norma em fazê-la saber sobre a visualização do feto, ou do embrião, significa transformá-la de vítima em assassina, mesmo decidindo por conduta legalmente chancelada. A vítima, em decorrência do artigo 8º da Portaria, está sujeita a verdadeira violência, abuso e desrespeito à sua autonomia e vulnerabilidade, de tal sorte que este tratamento normativo, em realidade, chancela a prática de tortura, tipificada constitucionalmente como crime inafiançável.