Josimário Silva
Coordenador Nacional da Rede Bioética Brasil
A assistência em saúde para pacientes com doenças sem cura e os em fim de vida, é um dos maiores desafios de uma Estado Democrático de Direito, que tem o dever de promover os meios necessários para o cuidado e a proteção do ser humano em suas dimensões biopsicosocial e espiritual e especialmente no processo do morrer.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
Introdução
O Direito à saúde está garantido na Constituição Federal desde a sua promulgação em 1988, como um direito fundamental. Esse direito garante o princípio da universalidade onde qualquer pessoa sem nenhuma distinção de credo ou ideologia, inclusive estrangeiro, pode ser atendida pelo Sistema Único de Saúde em sua rede básica, de média e alta complexidade. Nesta visão, surge um problema que o Estado brasileiro vem se deparando com muita frequência, a cobertura de necessidades em saúde com orçamento limitado. A escassez de recursos é uma condição real que exige que o Estado faça escolhas, o que pressupõe preferências para a aplicação desses recursos e nessa condição fica evidente que algumas demandas não serão contempladas. Em um contexto de recursos limitados, vai se tornando cada vez mais necessário a implementação de ações para otimizar os recursos escassos e a relação custo-benefício no fornecimento de serviços de saúde. Isso é extremamente necessário para aclarar os gestores em decisões apropriadas e justas de alocação de recursos.
O Papel do Estado
A mudança do paradigma quanto ao papel do Estado, impondo-lhe a garantia do mínimo existencial – assim compreendido como o atendimento e concretização das necessidades básicas de um ser humano, tornou o direito à saúde em uma ferramenta a ser utilizada pelo indivíduo, que adquire a possibilidade de exigir a prestação estatal em seu favor, através de uma assistência (teoricamente) universal e gratuita capaz de fornecer todos os materiais, medicamentos e procedimentos necessários à recuperação e manutenção da saúde; bem como em benefício de toda a comunidade, por meio da fiscalização e participação nos processos políticos decisórios.
A construção histórica da qualificação da saúde enquanto direito “fundamental” evidencia que essa classificação constitucional não busca atribuir características meramente retóricas, mas aumentar a carga normativa necessária à materialização da norma no mundo dos fatos, à atuação concreta da função social preconizada em seu dispositivo, para que, assim, seja capaz de aproximar o dever-ser normativo da realidade social.No artigo 196 da Constituição Federal de 1988 está que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Mas há uma condição vital para a obtenção do direito fundamental à vida, que é o financiamento. Nesse contexto deve ser levado em consideração que os recursos são finitos e precisa haver racionalização dos mesmos. A grande maioria dos direitos fundamentais depende de prestações positivas, exigindo gastos financeiros por parte do Estado, que encontra restrições para a total efetivação desses direitos na escassez de recursos. Mas há uma condição inegociável que é o Mínimo Existencial que afirma o direito de cada indivíduo às condições mínimas indispensáveis para a existência humana digna, que não pode ser objeto de intervenção do Estado, mas que exige prestações positivas deste. Consiste, então, em um padrão mínimo de efetivação dos direitos fundamentais.
Reserva do possível
A teoria da Reserva do Possível foi “importada” para o Brasil e interpretada unicamente como a Reserva do Financeiramente Possível, sendo considerada como limite à concretização dos direitos fundamentais sociais tão somente a existência ou não de recursos públicos disponíveis. Para Robert Alexy (2001) a reserva mínima do possível se define como “aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade”. Para esse autor, isso não tem como consequência a ineficácia de um direito à prestação estatal, mas expressa a necessidade de ponderar esse direito. Significa que direitos sociais, assim como todos os outros direitos fundamentais, não podem ser encarados como se tivessem conteúdo absoluto e aplicável a todos os casos de um modo definitivo, mas devem ser delimitados pela colisão de interesses verificados no caso concreto. Em síntese, seria um elemento externo, capaz de limitar ou até restringir o acesso dos titulares a um direito fundamental social específico, face à limitação orçamentária do Estado.
Uma análise Bioética
Fazendo uma análise do ponto de vista da bioética, é importante alertar que estamos diante de um problema ético que requer uma reflexão crítica sobre como aplicar recursos finitos para atender demandas crescentes em saúde. O primeiro passo é trazer alguns questionamentos, como se os deveres constitucionais estão sendo aplicados nos casos concretos? O progresso científico na área de saúde promove novas possibilidades de diagnóstico e tratamento e com isso rompe fronteiras proporcionando à sociedade novas esperanças, mas será que toda descoberta deve ser aplicada sem antes passar por um processo criterioso de custo/efetividade? O fato de termos recursos de última geração, nos obriga a usar tudo sempre? Qual seria o limite razoável entre a obstinação terapêutica e a futilidade terapêutica? A Bioética nos leva a refletir sobre os conflitos morais tão comuns em uma sociedade plural, e a buscar estratégias para mediar tais conflitos.
Cuidados Paliativos
Os Serviços de Cuidados Paliativos vem se expandindo em todo o mundo com o objetivo de melhorar a assistência de pacientes com doenças que ameaçam à vida, desde a fase inicial da doença até a sua fase terminal, através de um melhor controle dos sintomas, coordenação dos cuidados, melhor comunicação entre os profissionais e os pacientes e família, validando seu sofrimento e respeitando seus valores e crenças. Como um modelo “eticizado” de assistência em saúde, se bem planejado, desafoga o sistema de saúde na alta complexidade na medida em que muitos desses pacientes acometidos por doenças crônicas e progressiva podem ter seu atendimento e acompanhamento na assistência básica e só utilizando o sistema de alta complexidade em casos que necessitem de intervenções invasivas e cuidados especiais. Muito das ações em cuidados paliativos podem ser implementadas por meio de ações básicas, bem como o uso das medicações necessárias, principalmente para o controle da dor, como por exemplo a morfina. O modelo de assistência de medicina da família pode promover assistência em cuidados paliativos na própria comunidade e evitando que o paciente agrave seu quadro clínico e precise do sistema terciário. Nesta lógica, o sistema terciário fica para atender as demandas de maior complexidade.
Na atualidade, os cuidados paliativos vem se tornando uma emergência de saúde pública mundial. Estima-se que hoje no mundo, de acordo com a OMS (2020), mais de 20 milhões de pessoas necessitam de cuidados paliativos. E essa tendência vai crescer por vários motivos, sendo que um desses é a longevidade, fenômeno social que vem colocando as doenças crônicas não transmissíveis como umas das prioridades dos sistemas de saúde. Essas doenças são progressivas e a grande maioria é carreada de muito sofrimento. Cabe ao Estado promover ações em saúde que possam colocar os cuidados paliativos como uma das prioridades do SUS e instituir políticas públicas de saúde que consolidem esse modelo de assistência em saúde no Brasil.
Considerações finais
Em momento de escassez de recursos, a sistematização das ações em saúde de uma maneira geral e em especial nos cuidados paliativos, promove dignidade. Cabe ao Estado promover e patrocinar políticas públicas em saúde e sociais que possam maximizar as melhores condições possíveis ao ser humano acometido pela doença e o sofrimento. Cabe aos profissionais da saúde, promover e agregar valores, pois as tomadas de decisões não devem ser feitas baseada apenas nos fatos clínicos. Em cuidados paliativos, a assistência é de valores, de preservar ao máximo a dignidade do enfermo, de respeitar sua autonomia, de não submete-lo à tratamentos desproporcionais, que agreguem mais sofrimento do que benefício. Do mesmo modo que à vida humana precisa ser tratada com dignidade, à morte também precisa ser digna pois à morte é a extensão da vida. Em condições de escassez de recursos, se torna imperativo, promover de forma justa a distribuição dos recursos limitados usando o princípio ético da equidade, priorizando sempre os mais vulneráveis e os vulnerados, pois uma sociedade que não cuida e não protege os mais frágeis, nunca será evoluída moralmente.
*Josimário Silva é Coordenador da Rede Bioética Brasil.