Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Com o novo status, os animais ficam equiparados, no tocante à sensibilidade, aos homens, porém cada um carregando as diferenças específicas relacionadas a seus interesses e necessidades.
O Plenário do Senado Federal aprovou o PL 27/18, que teve origem na Câmara dos Deputados, visando criar o regime jurídico sui generis de sujeitos de direitos despersonalizados para os animais que, até então, pela legislação vigente nos crimes ambientais (lei 9.605/98), recebiam a consideração civil de bens móveis e eram considerados coisas.1 Doravante, com a aprovação legislativa, uma vez que o texto foi modificado, irá retornar à Câmara para análise dos deputados, os animais serão alçados à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Nem todos os animais, no entanto, foram abrangidos pela proposta protetiva. São excluídos os destinados à produção agropecuária, os utilizados nas pesquisas científicas e os que participam das manifestações culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro, como a vaquejada, por exemplo.
Fica cada vez mais evidenciada a realidade dinâmica que reveste o Direito. Na medida em que novas interpretações são feitas às normas jurídicas, incluindo nelas recentes valores ligados à cultura social, há um notável avanço da civilização. Com o novo status, os animais ficam equiparados, no tocante à sensibilidade, aos homens, porém cada um carregando as diferenças específicas relacionadas a seus interesses e necessidades. O ser humano é dotado de inteligência, volição para se definir diante das circunstâncias, com capacidade suficiente para projetar seus objetivos e traçar metas para atingi-los. O animal, por sua vez, deixa a categoria de coisa e ingressa na especial de seres sensíveis, com capacidade suficiente para demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, além de receber a tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.
É incontroverso negar a superioridade do ser humano, que é um fim em si mesmo, tendo à sua disposição tudo que se encontra na natureza, de acordo com a teoria do antropocentrismo. Mas, também é de se constatar, no âmbito doméstico, a relação de afeto entre a pessoa e o animal. Tanto é que, em recentes decisões envolvendo separação de casais, os tribunais vêm concedendo a guarda compartilhada de animais de companhia. Além do que a própria lei confere proteção geral quando estabelece sanção penal para aquele que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
A palavra senciência não guarda afinidade etimológica com a palavra sapiência. Ambas carregam raízes provenientes do latim. Enquanto sapiência (sapere) tem o significado de inteligência, conhecimento, senciência (sentire) tem o significado de sentir, ou na capacidade de sentir. Então, quando se fala agora da futura novatio legis em respeito à sensibilidade do animal, deve compreender que se trata de um ser vivo, detentor de uma vida incorporada à dignidade de sua natureza. Quer isto significar que, assim como o humano estabeleceu suas regras e quer ser bem tratado, de igual forma o animal, pelo regramento natural, quer idêntico tratamento.
Assim, o atributo da dignidade, que antes era conferido exclusivamente ao humano, devidamente legitimado pela sua natureza de ser pensante, guardadas as proporções, alcança o animal em razão da sua própria existência como ser vivo. A vida, desta forma, em suas diferentes modalidades, por si só, passa a ser o fato gerador da dignidade. Tal equiparação faz com que novas regras de convivência sejam criadas e, principalmente, as que evidenciam o respeito à sensibilidade animal. Cervantes, como que antecipando tal evolução, no diálogo mantido entre dois cães, Berganza e Cipião, assim o primeiro deles se manifesta: “É bem verdade que, no decurso da minha vida, diversas e muitas vezes ouvi contarem grandes vantagens nossas: tanto que parece que alguns quiseram entender que temos um natural diferente, tão vivo e tão agudo em muitas coisas, que dá indícios e sinais de faltar pouco para mostrar que temos um não sei quê de entendimento capaz de discurso”.2
Nessa perspectiva, o homem revestido da dignidade carrega consigo uma carga de direitos e deveres que propulsionam a busca da perfeição – pelo menos é a meta primordial da humanidade – e, nessa trajetória, compreende o relacionamento com o reino animal. Se for insensível com aquele que é sensível, numa desastrosa colidência, ultrapassando os limites do humano, demasiadamente humano apregoado por Nietzsche, certamente estará descumprindo regra básica e fundamental de convívio harmônico. Baertsch elucida a esse respeito, em exemplar magistério: “É o que chamamos de doutrina dos deveres indiretos: os deveres que temos em nosso trato com os animais são deveres diretos em relação às pessoas (nós mesmos – dever de perfeição – e outrem – dever de benevolência) e são, ao mesmo tempo, deveres indiretos em relação aos animais”.3
1 Disponível aqui.
2 Cervantes, Saavedra Miguel de. O colóquio dos cães. Tradução Walter Carlos Costa e Pablo Cardellino Soto- Campinas: Editora da Unicamp, 2013, p. 9.
3 Baertschi, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade. Tradução de Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 208.
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da UNORP, advogado.