Francesc Torralba i Roselló
Filósofo e Teólogo, Professor da Universidade Romon Llull (Barcelona) e colaborador do Instituto Borja de Bioética
Tradução: José Pedro Rodrigues Gonçalves
O autor procura explicitar algumas constatações prévias e expor, primeiramente, as ferramentas intelectuais que utilizou no esclarecimento destas questões. Ele acredita que é uma demonstração de honestidade intelectual apresentar quais são as fontes que alguém utiliza quando se propõe a explorar um tema complexo como, por exemplo, o das necessidades espirituais do ser humano.
O espiritual pode ser dito de muitas maneiras
A primeira constatação que desejo colocar de imediato é a extraordinária ambiguidade do termo espiritual. Esta ambiguidade pode ser constatada com uma análise comparativa entre diferentes dicionários que definem a palavra espiritual, por exemplo, o Dicionário de Filosofia de Josep Ferrater Mora, ou seja um dicionário de Mística ou de Ciências da Religião. Em todos eles, aparece como uma palavra extraordinariamente polissêmica. Esta consideração parece ser a chave, sobretudo diante das possibilidades do reducionismo do espiritual e das compreensões unilaterais e unidimensionais deste termo.
A partir de uma simples comparação com a bibliografia, mesmo filosófica e teológica, conclui-se que o espiritual pode ser considerado de maneiras muito diferentes.
O mesmo termo Geist é usado por Friederich Wilhelm Hegel, por Max Scheler, por Karl Rahner e para outras grandes referências na história do pensamento ocidental. Em cada uma de suas abordagens, a palavra adota um significado particular. Em algumas antropologias, o ser humano é definido como um espírito no mundo ou como um espírito encarnado. O mesmo termo está sujeito a usos muito diferentes, o que leva a uma situação de perplexidade, mas que, por sua vez, abre diferentes possibilidades intelectuais.
Não há cânone, nem uma dogmática sobre o espiritual. Essa circunstância permite abrir perspectivas muito amplas, mas também existe o risco de multiplicar discursos e cair em uma espécie de relativismo. No final, pode-se ter a impressão de que tudo é válido quando se fala em espiritual, que tudo pode ser dito, que tudo tem um lugar no espiritual. E então, naturalmente, pode-se cair no relativismo dos discursos. Portanto, entre considerar o espiritual como um dogma, como alguns o entendem, e essa constelação de múltiplo significados, onde se insere o discurso contemporâneo, creio que é essencial tratar de encontrar um conceito consistente e filosoficamente justificado.
1 .2. O espiritual na cultura pós-materialista
Uma segunda premissa consiste em constatar a emergência deste conceito precisamente no contexto de uma sociedade que alguns filósofos e sociólogos caracterizam como pós-materialista. Alguns podem ter a impressão de que nossa sociedade é materialista, ou mais precisamente, hipermaterialista.
No entanto, existem sintomas, especialmente nas novas gerações, nos marcos axiológicos das novas gerações, de um cansaço, de uma exaustão desse modelo de sociedade materialista. Isso foi explicado muito bem R. Inglehardt em uma análise sobre os valores da juventude pós-moderna, onde detectou que não é uma casualidade que a decadência da sociedade materialista tenha uma correlação com o desejo de espiritualidade. Existem vários exemplos que apoiam esta tese.
1 .3 . A emergência do espiritual
Entretanto, uma terceira constatação, como um princípio introdutório: vivemos uma emergência do espiritual de uma maneira claramente sincrética e, no máximo, inter-religioso ou ecumênico que vale a pena analisar. O tratamento do espiritual na sociedade pós-moderna já não obedece aos esquemas da sociedade cristã ocidental.
O que quer dizer que há uma abertura para o espiritual, para o sincretismo, tendo como base a união de diferentes tradições espirituais. Em jovens tem-se detectado um interesse crescente por novas tradições espirituais no horizonte da sociedade ocidental, o que se constitui em uma novidade. Estas tradições contemplam dimensões do ser humano que foram esquecidas, ocultadas durante a hegemonia do materialismo, quando esses jovens foram educados por um longo tempo.
Tem-se observado uma abertura ao espiritual do tipo sincrético, completamente heterodoxa e que tende a buscar pontos de união e convergência entre as diferentes tradições. Encontros de caráter ecumênico e inter-religioso são realizados, que nada tem a ver com o sincretismo. Pode-se detectar a abertura do espiritual a partir do diálogo das diferentes tradições, buscando os pontos de convergência na direção de uma união. Nesta tarefa, a filosofia intercultural tem um papel de extrema importância.
1 .4 . O espiritual como moda
Uma última constatação: o espiritual está se convertendo em uma moda, em um esteticismo puro que, sem dúvidas, tem que ser considerado criticamente. Jacques Maritain fazia referência ao culto ao tempo e ao novo como uma forma de novolatria, que consiste na tendência em converter em bom a última corrente da moda, somente pelo simples fato de ser a última a aparecer. Esta tendência carrega uma atitude de desprezo por aquilo que sempre foi aceito. O filósofo tomista se referia naturalmente à recusa da filosofia perene[3] e se lamentava da tendência de se aderir à última moda.
O espiritual está na moda. Nos objetos audiovisuais, nos produtos do mercado, a marca espiritual se converte em realidade de consumo. O espiritual vende. Isso pode ser observado de forma extraordinária nas redes de telecomunicações. Por ela, navegam autênticos mercenários do espiritual que recebem somas extraordinárias como resultado de seus serviços e de uma pretensa assistência espiritual. Vale a pena não cair nesse culto à novidade e mostrar como o espiritual, pelo menos nas grandes tradições, nunca foi esquecido, mas que revela uma dimensão essencial do ser humano.
1 .5. O espiritual na perspectiva judaico cristã
Na sociedade atual o espiritual foi esquecido por um longo tempo, porém ele não é uma moda na origem no pensamento judaico cristão, que sempre reconheceu nele uma dimensão intangível, não material, de caráter espiritual, no ser humano. Denominaram-se de modos diferentes, porém não é uma moda nas antropologias de Santo Agostinho, de Ireneu de Lião, de São Tomás, de São Boaventura, de Raimundo Lúlio e de muitos outros. Nas grande antropologias de recorte judaico cristão, pode ser observado o reconhecimento de uma dimensão espiritual no ser humano que pode ser interpretada de maneiras muito diferentes.
Geralmente, tem-se utilizada a expressão psique, do grego; anima, do latim e alma do espanhol, para denominar essa dimensão intangível do ser humano. Pode ser denominada de muitas maneiras, porém em qualquer caso não é uma novidade no pensamento da tradição judaico cristã. Esta novidade aparece nas sociedades materialistas. Nesta sociedade aparece, frequentemente, como uma moda que é mais comum em contextos anárquicos. O cidadão de um mundo invertebrado parece ter necessidade de recolhimento para um encontro consigo mesmo. O surgimento do espiritual tem a ver com a crise do pensamento e da percepção míope e a percepção do mundo como um todo caótico.
Reflexões sobre o conceito de necessidade
Dito isto, começo a partir da primeira parte do título, cuidando de esclarecer o que é necessidade, para, em seguida, fazer referência a uma relação de doze necessidades do tipo espiritual.
O conceito de necessidade refere-se, basicamente, a natureza de um ser deficiente, que tem uma natureza carente, ou seja, não tem a plenitude em si mesma, que não é autossuficiente. Umas coisa é ser autônomo e outra coisa, bem diferente, é ser autossuficiente. Podemos aspirar a ter parcelas de autonomia, precisamos desejar a tê-las, mas o que é inédito e, além disso, desproporcional ao ser humano, é aspirar a autossuficiência. Não somos autossuficientes, nem o é o homem adulto, muito menos a criança ou o jovem.
A autossuficiência é um mito que não está ao alcance da condição humana, porque ser carente é o fato definitivo do ser humano. Isto significa que para sobreviver temos de atender um conjunto de necessidades. Não se trata de atendê-las para nos tornarmos melhores, mas simplesmente para subsistir, para nos mantermos vivendo. Devemos atender necessidades de ordens bastante diferentes que, naturalmente, podem ser agrupadas.
Neste sentido, pode-se falar de necessidades primárias, de necessidades secundárias, de necessidades materiais e, também, por que não, de necessidades espirituais.
Afirmei na introdução que me referia a ferramentas e aqui me refiro as primeiras delas, as utilizadas para analisar esta dimensão do ser humano, como ser carente. Trata-se de trazer uma das contribuições mais lúcidas da filósofa de Vélez, Maria Zambrano, em duas de suas obras: Homem e o Divino ou Claros do Bosque. Essa filósofa extraordinária, discípula de Xabier Zubiri e também por José Ortega y Gasset, define o ser humano como ser carente, como alguém que sempre tem que satisfazer necessidades. Sente a necessidade de comer, de dormir, de se sentir amado, de ter identidade, de Deus etc. em suma, um conjunto de necessidades. Apropriadamente se refere ao ser humano como homo mendicans.
Este dado é fundamental, sobretudo levando em conta que existem antropologias que esqueceram o traço essencial do ser humano que é o fato de ser carente. Nessas antropologias, não tem sentido falar em necessidade, muito menos, claro, em necessidades espirituais. Como afirmou Zambrano, a carência não é um traço de alguns seres humanos, mas a mendicidade é da natureza do ser humano.
Somos todos mendigos, porém mendigamos coisas diferentes. Podemos mendigar de diferentes maneiras, porém o ser mendigo, a mendicidade é um traço fundamental do ser humano.
Outro elemento chave: este ser carente tem necessidades, porém elas podem ser de dois tipos: a de ordem natural e as de ordem artificial. O ser humano tem necessidades naturais e necessidades que ele sente como fundamentais, porém são objetos de uma interiorização por conta da cultura e dos meios de comunicação de massa. Na verdade, o ser humano é um ser de necessidades, mas ele tem muito mais necessidades do que realmente teria como consequência da influência da cultura e das mídias sociais. Nesse universo em que vive, ele se depara com uma série de necessidades que são totalmente artificiais, mas que ela as considera vitais.
Essas necessidades percebidas como vitais, mas não são de fato, resultam de uma cultura consumista, de uma cultura fundada em ter e no artifício. Eles são, em suma, a resposta aos estímulos que recebemos da mídia ou de uma ordem cultural. Nesse sentido, criamos muitas necessidades que alienam nossas vidas. As necessidades de ordem espiritual emergem da interioridade da pessoa, embora sejam articuladas em cada contexto de acordo com a cultura e tradição do local onde a pessoa está localizada. Elas não podem ser consideradas necessidades de ordem artificial, porque são encontradas transversalmente em todas as culturas humanas, embora tenham expressões muito diferentes em cada uma delas.
A necessidade, por exemplo, de orar, pode estar claramente localizada no conjunto desse tipo de necessidade espiritual. A necessidade de enfrentar um eu eterno, um alguém além do próprio horizonte, é uma necessidade que surge no ser humano, embora alguns filósofos considerem que essa necessidade é o resultado, também, de uma educação e que, portanto, é artificial na pessoa. O debate é muito sério, porque a definição de pessoa e o valor da indigência espiritual estão em jogo. Arthur Schopenhauer afirma, por exemplo, que a necessidade religiosa é um artifício, enquanto outros autores de grande importância, como o próprio Viktor Frankl, afirmam que a necessidade religiosa é intrinsecamente humana, que emerge do ser humano. O autor deste texto participa desta segunda posição, embora admita o valor que a ação educativa tem no desenvolvimento e cultivo do referido potencial humano.
A necessidade espiritual é intrinsecamente humana, mas tem manifestações culturais muito diferentes. Existe um mosaico de expressões de necessidades espirituais, mas além delas existe uma singular comum entre diferentes seres humanos. Somos muito diferentes, de cor, de raça, de linguagem, de tradição, de cultos, de ritos, mas existe essa singular origem comum entre os diferentes seres humanos. Essa origem comum pode ser a necessidade espiritual percebida de maneiras muito diferentes na dimensão das culturas. Nas culturas seculares, essa necessidade espiritual também pode se expressar, mesmo que seja por meio do que Peter Berger chama de religião invisível, de uma maneira diferente da dos cânones comuns.
3 . O ser humano como ser carencial
O ser humano, como já foi dito, é um ser deficiente, dotado de necessidades de ordem natural e artificial. Além disso, é um ser que, quando experimenta extrema falta de energia, quando doente, seu quadro de necessidades muda profundamente.
A doença não é um fato acidental no decorrer da vida, não é algo irrelevante. Pedro Laim Entralgo em Antropologia Médica para clínicos, afirma que a doença não pode ser reduzida à categoria de acidente, uma vez que o acidente é irrelevante na estrutura da pessoa, enquanto a doença gera, nela, uma verdadeira desestruturação.
Estar doente não é algo acidental, especialmente quando alguém sofre de certas doenças. O que você precisa pensar é como a hierarquia das necessidades espirituais é alterada como resultado da experiência da doença.
Existem necessidades que estão em estado latente, mas que, como consequência da experiência da doença, emergem fortemente. A necessidade de orar, por exemplo, pode estar em um estado latente, mas havendo uma experiência de qualquer ordem, pode fazer com que essa necessidade, que estava em um estado latente, surja em primeiro plano da vida consciente. Pode acontecer com a necessidade de orar, mas também com a necessidade do silêncio, do símbolo ou de significado.
Portanto, é necessário analisar como emergem as necessidades latentes, já existentes, mas que afloram como consequência dessa experiência da doença. Isso não acontece apenas com a doença, mas também em relação a outras experiências, como a da paternidade. A necessidade que se tem de pensar sobre isso e o que isso importa, torna-se uma necessidade de ordem coletiva. Como pai, tenho que pensar em outro ser que é vulnerável e que depende fundamentalmente de mim.
Ao longo de nossa jornada de vida, vivemos experiências que alteram nossas necessidades, incluindo aqueles de ordem espiritual. Por isso, não sou um defensor de desenvolver uma imagem estática das necessidades, mas, antes, uma imagem dinâmica, na qual as necessidades se alternam ou se modificam com base em experiências que vivemos durante toda trajetória de nossa vida.
O homem apaixonado, por exemplo, tem algumas necessidades que não tem aquele que não está apaixonado. Tem, por exemplo, a necessidade da presença da outra pessoa, de vê-la, de ouvi-la, de estar com ela. Carrega a dor da ausência da pessoa amada.
Há um tipo de necessidade que não está em nossas vidas, mas que pode aparecer como resultado de uma experiência nova. Ou melhor: eles estavam, porém de modo latentes e, posteriormente, aparecem.
O ser humano é um ser carente, mas isso não o explica totalmente, porque, além de ser carente, ele é um ser com capacidades de, por engenhosidade, resolver o conjunto de necessidades, mesmo que provisoriamente. Se fôssemos apenas seres deficientes, dificilmente teríamos sobrevivido à luta das espécies. Somos carentes, mas temos uma inteligência prática, que é a capacidade de antecipar necessidades, de prevê-la e nos preocuparmos com elas antes que se manifestem.
Vou levantar doze necessidades que poderiam ser colocadas dentro do espiritual, compreendendo o espiritual como o não tangível, como o não cósmico, como aquela necessidade de ordem intangível que emerge de ser humano, como uma necessidade que não tem diretamente uma razão física, orgânica.
Quadro de necessidades espiritualizes. Primeiro esboço
4.1. Necessidade de sentido
O ser humano sente a necessidade de dar sentido a sua vida, a sua existência. Não se satisfaz pelo fato de estar, subsistir ou permanecer no ser, mas que, também, além de ser, deseja permanecer como ser com um sentido. Se perceber que essa permanência não tem sentido, que a vida precisa de sentido, que se torna algo absurdo, estúpido, insípido; pode inclusive desejar de não ser, de nada fazer.
Esta necessidade de sentido, é necessidade de ordem espiritual e pode ser enfocada de muitas maneiras. A necessidade de sentido pode ter suas respostas encontradas em diferentes tradições, quer sejam de ordem imanente ou transcendente, porém o que une os seres humanos em suas carências espirituais, é a necessidade de sentido.
4.2 . Necessidade de reconciliação
O ser humano sente necessidade de se reconciliar, de fechar o círculo de sua existência e vencer o ressentimento. Tem necessidade de ser curado do ressentimento e essa cura será encontrada no perdão. Não existe outra forma de curar o ressentimento que não seja através do perdão e da reconciliação. Não existe dúvida que esta necessidade é essencialmente de ordem espiritual, tem expressão de caráter afetivo e psicológico. Dificilmente se encontra uma serenidade interior sem que se pratique a reconciliação.
Essa necessidade de reconciliação pode surgir em um plano imanente, mas também em um plano transcendente. O cuidador deve velar para que esta reconciliação aconteça, significando que deve facilitar, quando isso for possível, a aproximação entre pessoas com a finalidade de promover, entre elas, essa reconciliação. Nas pessoas em situação terminal ou crítica esta necessidade, entretanto, é percebida com maior intensidade, precisamente porque, como consequência da proximidade da morte, deve ser buscada com mais urgência a necessidade da reconciliação para resolver assuntos pendentes entre essas pessoas.
4.3. Necessidade de reconhecimento da identidade
A necessidade de que a própria identidade seja reconhecida e respeitada é uma necessidade de primeira ordem, que naturalmente tem, também, conotações de ordem psicológica e social. A necessidade que minha identidade não seja violada, que ela não seja deformada é muito comum no ser humano, fica evidente quando alguém reclama que há um processo de dissolução de sua identidade e das referências que configuram a sua existência.
O ser humano não só tem necessidade de conhecer, mas também de ser reconhecido. Deseja que seja reconhecido pelo que é. Quando esta necessidade não é reconhecida corretamente, a identidade é violada. Isto também tem a ver com as identidades coletivas. Quando não se reconhece a identidade coletiva, podem ocorrer fenômenos que nunca deveriam, ser esperados. No plano pessoal a identidade tem que ser reconhecida. Quando a identidade do outro é depreciada, este outro sente-se profundamente humilhado.
A necessidade de reconhecimento de uma identidade implica no respeito às características do outro (reconhecimento e aceitação da alteridade).
A identidade sempre se define por uma constelação de traços, como a língua, a religião, a condição sexual, a formação de laços afetivos, entre outros. Reconhecer a identidade do outro significa tratar o outro como você mesmo, como uma pessoa que tem nome e sobrenome, que é, acima de tudo, uma pessoa, um ente singular e único na história. Isto significa que o tratamento anônimo, os processos de despersonalização e a indiferença, são formas de não respeitar a necessidade espiritual de reconhecimento da própria identidade.
4.4. Necessidade de ordem
O ser humano tem necessidade de organização, de um lugar no espaço e no tempo. Somos seres espaço-temporais e a desordem influencia negativamente em nossa estrutura vital. Não existem dúvidas que os modos de compreender o que significa ordem varia de uma pessoa para outra, não só culturalmente, mas também entre gerações, porem cada ser humano sente a necessidade de viver de acordo com sua própria determinação e quando se encontra em um contexto onde não pode se expressar nem viver conforme seu mundo pessoal, sente com muita intensidade esse mundo.
Temos necessidade de dar uma ordem, de organizar os acontecimentos da vida, organizar as experiências. Não estou me referindo apenas à necessidade de natureza física, que também influencia a pessoa, mas também as de caráter interior. Sentimos necessidade de ordenar os acontecimentos, as prioridades, os sentimentos, as lembranças. Por essa razão, a patologia é uma forma de desordem, de desorganização em todos os sentidos. Quando alguém adoece, essa ordem perde seu eixo, se desestrutura e, por isso, requer uma intervenção cuja finalidade é o restabelecimento daquela ordem, não da ordem do sujeito que cura, ou seja do cuidador.
Esta necessidade de ordem é do tipo espiritual. De fato, alguém pode ter resolvidas as suas necessidades primárias, mas ainda sentir a necessidade de colocar em ordem o seu interior. É muito difícil que alguém sozinho consiga fazer isso. Geralmente, requer a intervenção de outra pessoa, da palavra e do conselho do outro para reestruturar seu próprio mundo.
4.5 . Necessidade de verdade
Platão definiu o ser humano como um ser que deseja conhecer a verdade. Que sente necessidade de conhecer a essência das coisas. O homem deseja transcender a ordem das aparências, sente o impulso de ir mais além do fenômeno, compreender o que são as coisas.
Esta necessidade é percebida com muita intensidade quando se trata de esclarecer a própria realidade, o que cada um realmente é. O doente sente a necessidade da verdade, mesmo que nem sempre esteja preparado para ouvi-la ou, pelo menos, aceitá-la. O cuidador deve comunicar essa verdade de forma suportável, isto é, a verdade que o doente pode compreender e assumir em sua subjetividade.
Algumas vezes, o próprio sujeito não quer conhecer a verdade, por essa razão ele se protege por medo do que ela possa revelar. O cuidador não pode cair no que se denomina de obstinação informativa, nem tampouco pode praticar a indiferença diante do doente. Deve cuidar de se informar por que esse doente não quer conhecer a verdade, o que teme e como ajudá-lo a superar esse medo diante da verdade.
4.6. Necessidade de liberdade
A necessidade de liberdade é identificada, geralmente, pela autonomia, porém a necessidade de liberdade é mais ampla. O conceito de liberdade é mais completo que o conceito de autonomia. Naturalmente se não há autonomia, não há liberdade, porém a liberdade, na perspectiva de libertação, ou do que Santo Agostinho denominava libertas, é uma libertação de todas as amarras do ego.
O ser humano tem a necessidade de se libertar, de libertar-se de tudo o quanto o aliena e o mantem em um estado de subordinação. A necessidade de agir livremente é muito limitada por consequência da doença, porém a possibilidade de se libertar de determinadas obsessões ou fixações interiores é independente da doença. Cuidar das necessidades espirituais das pessoas implica em dar respostas às necessidades de liberdade ou, mais concretamente, de libertação. Uma prática do cuidado que não seja libertadora, não é uma boa prática de cuidado.
4.7. Necessidade de pertencimento
A necessidade de se estabelecer de maneira permanente em um lugar pode ser explicada como o desejo de pertencer a algum tipo de comunidade. É a necessidade de pertencimento. O ser humano, enquanto um animal político e social, estabelece vínculos ao longo de sua caminhada na vida, criando laços afetivos.
Quando estes laços são rompidos e acontece uma separação, percebe-se de um modo muito intenso a necessidade de enraizamento ao seu lugar, de se sentir vinculado a sua gente, ao seu povo, a uma comunidade, a uma família. Tendemos a lançar raízes e sentimos a necessidade de estar com os nossos. Não somos seres desenraizados. Esta necessidade não só é de ordem psicológica ou social, mas também espiritual porque afeta o que é mais profundo e intangível do ser humano.
O ser humano sente necessidade de enraizamento, especialmente em contextos que se caracterizam pelo individualismo, o atomismo e a fragmentação. Esta necessidade, entretanto, é percebida mais em contextos anônimos, vazios, onde alguém se sinta como um estranho. Nestas circunstâncias, alguém necessita, mais do que nunca, de sua comunidade de raiz.
4.8 Necessidade de orar
A necessidade de orar é de ordem espiritual e religiosa. Pode ser descrita como a necessidade do Tu eterno, de uma religação existencial com o Tu, para dizer ao modo de Xabier Zubiri. Esta é uma necessidade transversal nas religiões. Os estudiosos da fenomenologia da religião consideram que algumas peculiaridades transversais das diferentes manifestações religiosas são, precisamente, isso que denominamos oração.
Essa necessidade de diálogo, abertura a um Tu invisível e transcendente, ocorre não apenas no homem institucionalmente religioso, mas também no homem quando ele enfrenta sua solidão e seu desamparo.
Quanto maior for a experiência da fragilidade do homo mendicans[4], tanto mais intensa se percebe a necessidade do Tu.
4.9. Necessidade simbólico-ritual
O ser humano produz símbolos. Estes símbolos são os artefatos que nos permitem dizer o que não podemos expressar com palavras. Brincamos com eles e o utilizamos em diferentes contextos.
A necessidade de representação simbólica, além de cumprir com algumas funções sociais, é uma necessidade de ordem espiritual que, sobretudo, expressa quando não podemos expressar experiências muito profundas. Então necessitamos de símbolos, artefatos e mediações para exprimir o que não expressamos verbalmente.
Também sentimos a necessidade de ritos. O homem é um animal ritual e sente a necessidade de comemorar e celebrar as experiências chaves de sua vida, como o nascimento ou a morte de uma pessoa amada. Existem rituais fundamentais no ser humano, não só de ordem religiosa. Isso é observado em sociedades muito secularizadas.
A necessidade de ritualizar determinadas experiências chaves da vida humana é uma experiências que tem que ver com o espiritual, mesmo que não necessariamente com o religioso.
4.10. Necessidade de solidão – silêncio
Miguel de Unamuno, em sua extraordinária obra intitulada “Solidão”, distingue dois tipos de solidão: a solidão buscada e a solidão forçada. O ser humano sente a necessidade de estar só, de fugir da sociedade, de abrir um parêntesis de espaço e tempo de solidão. Esta necessidade de solidão é fundamental para o equilíbrio pessoal, a prática da meditação e a construção consciente e reflexiva da própria identidade.
A necessidade de solidão, de se encontrar consigo mesmo, leva o sujeito a uma viagem sem retorno. Cuidar de uma pessoa e atender às suas necessidades de ordem espiritual significa propiciar a ela essa experiência de solidão, se o doente solicitar. O que constitui um imperativo ético mínimo na prática de cuidar é garantir que o outro não sofra solidão forçada.
4.11 . Necessidade de cumprir o dever
O ser humano sente a necessidade de cumprir com seus deveres. A pessoa sofre um mal estar interior quando percebe que não cumpriu com suas obrigações. Naturalmente, a experiência do dever é muito subjetiva e cada ser humano a vivencia segundo sua própria natureza, porem a necessidade de cumprir com o próprio dever é uma necessidade própria do sujeito livre e capaz de autodeterminar-se e regular a própria vida. Cuidar de uma pessoa significa ajudá-la a pensar e articular faticamente seus deveres. O doente que está morrendo experimenta a paz ao se aproximar do transe final com a clara consciência de ter cumprido com os seus deveres ao longo da sua existência. O doente que percebe que ainda deve realizar determinados atos, antes do ato final, requer atenção para que ele possa materializar esses atos e morrer em paz.
4.12. Necessidade de gratidão
Existe a necessidade de gratidão, que pode ser descrita como a necessidade de se sentir agradecido pelo que alguém tenha feito. É a necessidade de reconhecimento. O ser humano, como é frágil, tem necessidade de gratidão, de agradecimento. Precisamos que nos digam obrigado pelo que dissemos, pelo que fizemos, pelo nosso trabalho neste mundo. Essa é uma necessidade muito humana que afeta o plano espiritual, mas também o plano interpessoal.
Não é fácil atender a essa necessidade, mas é possível fazê-lo quando o cuidador souber diante de quem está e depois de uma escuta atenta de sua história, é capaz de valorizar alguns elementos de sua existência e demonstrar ao doente que sua vida tem valor, que merece ser vivido, mesmo que por apenas certos episódios que ele, a priori, não considerado relevante.
A modo de conclusão
Este quadro de necessidades espirituais deve ser visto em um sentido aproximado, como um esboço. A nosso juízo, a questão das necessidades espirituais não deve ser considerada como um resquício de caráter confessional, que se procura incrustar artificialmente em um mundo secularizado e laico, mas um traço antropológico universal. Todo ser humano, enquanto humano, é portador de necessidades espirituais que devem ser atendidas ao longo de sua vida. Esta ordem de necessidades pode ser expressa de uma maneira explícita, mas também de um modo implícito. A manifestação e a intensidade destas necessidades variam de acordo com as circunstâncias e segundo o estado evolutivo de cada pessoa. As necessidades espirituais, como as outras necessidades, mudam com o tempo e não são percebidas igualmente durante a vida.
Isso significa que um estudo minimamente sério reivindicaria a investigação dessas necessidades em diferentes momentos da pessoa. Torna-se evidente, de um modo intuitivo, que as necessidades espirituais de uma pessoa em final de vida não são as mesmas que sente uma pessoa jovem na plenitude de suas faculdades. Muito menos serão expressas, de igual modo, as necessidades espirituais na pessoa sadia, do que na pessoa que sofre de uma patologia de ordem mental.
Entretanto, o ser humano, enquanto um ser vulnerável, é um ser que tem, por natureza, necessidades que precisam ser superadas durante sua existência. As necessidades de ordem espiritual constituem parte de um quadro de necessidades humanas e requerem, como qualquer outra necessidade, uma intervenção adequada, competente e profissional de quem exerce o compromisso de cuidar.
[1] Publicado em: Labor hospitalaria: organización y pastoral de la salud. Año 2003, Número 271. Traduzido com autorização do autor para publicação no site da Rede Bioética Brasil.
[2] José Pedro Rodrigues Gonçalves. Médico, Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências Humanas.
[3] A Filosofia Perene também chamado de sabedoria perene, é uma perspectiva na espiritualidade moderna que enxerga todas as tradições religiosas do mundo como compartilhadoras de uma verdade única, sendo ela metafísica ou a origem da qual todo o conhecimento esotérico e exotérico e doutrinal se desdobraram.
[4] Homem pedinte