Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Trata-se de crime complexo e transnacional praticado mediante ação múltipla, com a descrição de várias condutas, representadas por verbos diferentes, inseridos no mesmo tipo penal e basta a realização de uma só delas para que seja consolidado o ilícito.
domingo, 4 de agosto de 2019
Dia 30 de julho é considerado o Dia Mundial e Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com a realização de diversas ações de orientação e implementação de políticas públicas para combater tão grave delito. O tráfico de pessoas é um problema que, desde os primórdios, sempre afetou a humanidade. No Brasil, em alguns períodos, era lícita a comercialização de escravos provenientes das colônias portuguesas na África, considerado como um comércio de alta lucratividade. Com a abolição da escravatura, que muito contou com a mobilização popular e com a participação de grupos políticos abolicionistas, colocou-se fim ao trabalho escravo no país. Mas não extirpou definitivamente o tráfico de pessoas.
Basta ver, a título de esclarecimento, que a lei 11.106/05 alterou alguns dispositivos do Código Penal e a ele acrescentou o artigo 231-A que prevê o delito de tráfico internacional de pessoas, consistente em promover, intermediar ou facilitar a entrada no território nacional, de pessoa que venha a exercer prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no exterior. Também traz o tipo penal de tráfico interno de pessoa, nas modalidades de promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoa que venha a exercer a prostituição. Nas duas modalidades, conforme se observa, o combate é voltado para a exploração sexual seja no território nacional ou fora dele.
Mesmo assim, a cobertura legal era insatisfatória. Para tanto, foi editada a lei 13.344/16 – que teve origem nos resultados obtidos no Senado Federal pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico Nacional e Internacional de Pessoas – visando aperfeiçoar o enfrentamento ao tráfico de pessoas, compreendendo a prevenção e repressão e acrescentou o artigo 149-A no Código Penal. Tal tipo penal define o crime de tráfico de pessoas, numa dimensão mais ampla do que a lei anterior, compreendendo o recrutar, o agenciar, o transportar, comprar ou alojar pessoas, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: a) remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano; b) submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; c) submetê-la a qualquer tipo de servidão; d) adoção ilegal; e) exploração sexual.
Para o estudo ora em comento interessa somente o primeiro item referente à remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano. A legislação brasileira a respeito dos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, como se sabe, permite somente que a doação em vida seja feita por pessoa juridicamente capaz, para o cônjuge, ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou para qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial. Já a doação post mortem só pode ser feita pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a regra sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. (lei 9.434/97).
Com efeito o sucesso das variadas modalidades de transplante despertou a atenção de especuladores que, clandestinamente, começaram a praticar o comércio com a venda de órgãos humanos, no chamado mercado negro. “Quase sempre, afirmam com a costumeira segurança Berlinguer e Garrafa, as informações sobre os casos de comércio de funções e partes do corpo humano se referem a dois sujeitos: um pobre, o vendedor, e um outro dotado de maiores conhecimentos, poderes e poder de compra, que é o recebedor-comprador. Entre os dois se coloca organicamente uma terceira figura: o intermediário ou procurador, que age individualmente ou, o que é mais comum, como representante de uma empresa”.1
Trata-se de crime complexo e transnacional praticado mediante ação múltipla, com a descrição de várias condutas, representadas por verbos diferentes, inseridos no mesmo tipo penal e basta a realização de uma só delas para que seja consolidado o ilícito. Cada uma revela, dentro da elasticidade a ser retirada dos núcleos do tipo, que o agente age em seu próprio interesse ou faz parte de um grupo bem organizado, com funções adredemente distribuídas e espalhadas nas diversas rotas, incluindo as de turismo, para a realização de transplantes, numa perfeita conexão nacional e internacional para a retirada de órgãos bem cotados no mercado negro, deixando antever a finalidade lucrativa contida na intolerável conduta, agindo sempre com emprego de grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, contra as incautas vítimas.
Ludemir, em impressionante relato, faz ver que a escassez de órgãos para transplantes provocou um interesse mundial, ditado pelo mercado negro: ”Surgiram verdadeiros “pacotes” de viagem para levar os pacientes renais crônicos da Europa, América do Norte e Japão para operações clandestinas, em hospitais conhecidos no próprio dia do transplante. Em 1998, essas iniciativas custavam US$ 200 mil. Incluíam a viagem de avião, a comissão de agentes de aduanas e aeroportos, a dupla operação (a extração do rim e o transplante), o aluguel de clínicas privadas e a hospedagem de familiares”.2
A legislação brasileira oferece a tutela protetiva necessária ao cidadão, seguindo as diretrizes internacionais das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Necessita, no entanto, de uma divulgação mais ampla à sociedade visando à prevenção de tão odiosa prática.
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1 Berlinguer, Giovanni; Garrafa, Volnei. O mercado humano; tradução Isabel Regina Augusto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª ed., 2001, p.158.
2 Ludemir, Julio. Rim por rim. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 265.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da UNORP, advogado.