Cenários futuros Francesc Torralba Universidad Ramon Llull Director Cátedra Ethos
Tradução: José Pedro Rodrigues Gonçalves
Resumo: Tomando como ponto de partida as múltiplas definições de bioética, o autor faz uma série de esboços sobre o futuro da bioética, compreendida aqui como uma bioética social e global, que transcende as fronteiras dos países desenvolvidos. Para isso, propõe oito desafios futuros: a qualidade de vida dos mais vulneráveis e a justa distribuição de recursos, a ética da gestão da água, a relação entre ecoética e bioética, os direitos dos seres não humanos, as fronteiras entre o humano e o ético, a ética gerontológica, o transhumanismo e a eugenia liberal.
Palavras Chaves: Bioética global, ecoética, transhumanismo, eugenia liberal
O desenvolvimento vertiginoso das biotecnologias e as transformações de ordem axiológica e social que o mundo experimenta, tornam muito difícil articular uma prospectiva com um mínimo de garantia de acerto. Aqueles que fundaram o diálogo bioética, quando começaram a se reunir para encontrar problemas e suas possíveis soluções, criando os primeiros comitês de ética assistencial e os primeiros institutos de bioética do mundo, jamais imaginariam quais seriam os dilemas que, atualmente, adquirem centralidade da bioética fundamental e clínica.
Mais uma vez a realidade supera a imaginação ética. Por essa razão, a cautela e a prudência que seria melhor modificar o títulos deste artigo ou, pelo menos, chamar atenção do leitor de que se trata de um esquema, melhor dizendo, um esboço dos cenários do futuro que, atualmente podemos vislumbrar. Sem dúvida, a realidade supera a ficção e no terrenos da bioética emergem problemas e situações dilemáticas que jamais forma percebidos anteriormente, mas que exigem uma resposta razoável, devidamente ancoradas em critérios e argumentos sólidos. Estamos diante de um problema novo em relação ao momento de fundação da bioética: o equívoco que enriquece a palavra bioética na atualidade. Não se trata de codificar as múltiplas definições que foram elaboradas desde a década dos anos setenta do século XX até agora, mas constatar que o vocábulo foi convertido em um significado problemático, inclusive ambíguo, o que, entretanto, torna mais difícil a tarefa de identificar os grandes desafios do futuro.
O que, no princípio, foi um diálogo interdisciplinar entre os cientistas e teólogos, converteu-se, com o tempo, em uma disciplina, em uma matéria opcional em programas universitários, em uma ética aplicada ou em um tratado para ser exposto, porém a bioética, como sublinha Francesc Abel, é, antes de tudo, um diálogo interdisciplinar que tem como finalidade esclarecer os problemas e encontrar soluções viáveis e razoáveis para os 1 Publicado em: Revista Iberoamericana de Bioética / nº 01 / 01-12 [2016] [ISSN 000-000] DOI: 10.14422/rib.i01.y2016.002 2 José Pedro Rodrigues Gonçalves. Médico, Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências Humanas problemas de gestão e administração da vida em todas as suas mais variadas forma e fases de desenvolvimento3 . Desde os anos setenta do século passado, multiplicaram-se exponencialmente as vertentes da denominada ética aplicada (applied ethics), de tal modo que algumas questões que originalmente faziam parte do diálogo bioético em um sentido amplo, são objetos de estudo especializados dentro de outro campo do saber. Não há dúvidas que, na atualidade, é muito difícil traçar as fronteiras disciplinares e demarcar os campos de competência do diálogo bioético. Debates de ética clínica se conectam dentro do campo da bioética, mas também os que dizem respeito aos cuidados dos animais e das plantas, à sensibilidade ecoética, à cultura da água, à distribuição dos recursos energéticos globais e o crescimento demográfico. Muito além das denominações (ecoética, tecnoética, ética da biotecnologia. ética ambiental, geoética …), qualquer debate ético que tenha como epicentro a vida em qualquer de suas formas, pode ser considerada, em sentido pleno, um debate de natureza bioética. Partindo desta ideia tão ampla, que vincula o conceito de bioética com o significado que este termo adquiriu em sua origem, iremos apresentar, a seguir, alguns pontos temáticos, em forma de esquema, que inclui tanto aspectos globais como locais, assistenciais como ecológicos, porém todos eles tem o cuidado como foco de reflexão, a gestão e a administração da vida, em qualquer de suas formas, desde a unicelular até a complexidade inerente à vida humana. 2. Desafios de ordem global Impõe-se a necessidade de articular uma bioética social de caráter global que transcenda os debates internos dos países mais desenvolvidos do planeta e que tenha como objeto formal de reflexão o desenvolvimento de uma vida digna sobre o planeta, muito além das fronteiras entre norte e sul e as relevâncias nacionais. A reflexão sobre gestão da vida humana e não humana no conjunto do planeta deve ser o ponto de reflexão da bioética global e, exatamente por isso, deve ter um recorte inevitavelmente social. Sob este ponto de vista, reivindicamos para o interior do campo da bioética, áreas do saber que nos últimos anos permaneceram deslocados e excluídas, porque focaram os temas no âmbito clínico assistencial e os debates foram centrados no uso e manejo das novas biotecnologias, o que é um debate de países do chamado primeiro mundo, sem ser, entretanto, um debate bioético global. 2.1. Vidas desperdiçadas. Distribuição justa dos recursos A qualidade de vida (quality of life) de uma grande parte da humanidade que se encontra em condições de extrema vulnerabilidade econômica e social, como consequência de uma má distribuição dos recursos alimentares e energéticos que ocorre no planeta, é o primeiro grande desafio que deve ser abordado por uma bioética social de caráter global. 3 Cf. Abel, F. (2001). Bioética: orígenes, presente y futuro. Barcelona: IBB-Fundación Mapfre. Um dos aspectos mais claros da bioética social de caráter global é o seu pragmatismo, isto é, a capacidade para articular propostas que seja efetivas e aplicáveis, tanto por parte das organizações como dos profissionais. A justa distribuição dos recursos é essencial para garantir o desenvolvimento e o crescimento efetivo de milhares de seres humanos e uma qualidade mínima de existência. Apesar das campanhas de sensibilização e do meritório trabalho de organizações não governamentais, as soluções apresentadas até o momento, resultaram insuficientes para transpor o abismo entre os dois mundos, para garantir a todo ser humano uma vida digna. Eis aí um desfio de primeira ordem na bioética do futuro, um desafio em que existe consenso na comunidade internacional e que requer, por parte dos teóricos, propostas que sejam aplicáveis e que possam promover uma mudança estrutural na dinâmica dos últimos anos. 3. 2. Ética da gestão da água A água é um bem absolutamente imprescindível para o desenvolvimento físico da vida humana. É importante lembrar que praticamente oitenta por cento do corpo humano é constituído por água, o que significa que é um bem necessário para nossa existência e permanência. É irônico que em um planeta chamado azul, vivam milhares de seres humanos sem acesso a este bem fundamental e que acabam morrendo por causa disso. É uma ironia que, apesar do vertiginoso desenvolvimento da engenharia e da tecnologia em tantos campos, ainda nãos e tenha garantido um sistema de abastecimento universal para todos os seres humanos. A ética da gestão da água é parte integrante da bioética. Mesmo que a água não seja um ser vivo, é a condição de possibilidade da vida e da vida humana em particular, portanto, a reflexão ética sobre a sua distribuição justa e o seu abastecimento é fundamental, bem como a limitação de seu uso. Tudo indica que a água será um dos grandes pontos focais do debate em bioética, especialmente se houver, como alguns especialistas antecipam, um problema de escassez de água no futuro e uma distribuição justa e equitativa dela seja necessária. 2. 3. Ecoética e bioética. Espaços de intersecção Um dos temas que irá ocupar o centro do debate bioético e ecoético no futuro imediato será a gestão da natureza, considerada como um todo. O paradigma moderno que regulou o vínculo entre o ser humano e o conjunto da natureza, acabou conduzindo a um colapso. A visão puramente instrumental do conjunto da natureza, entendida como matéria extensa, ou como reserva energética indefinida, fruto do processo de sua dessacralização e desmitificação do mundo, trouxe como consequência a crise ecológica global que não só tem consequências dramáticas para os países mais industrializados do planeta, mas também para aqueles que jamais participaram deste paradigma, porque os efeitos são globais em um mundo interdependente como o nosso. O debate ecoético, onipresente desde a década dos anos setenta do século XX, continuará sendo um dos focos problemáticos mais difíceis de elucidar, pois a mudança de paradigma exige também uma mudança de atitude diante da natureza, porém necessita de um novo modo de produção e de consumo. Manter um nível de qualidade de vida, de comodidade e de conforto tecnológico e, além disso, articular uma relação sustentável com o conjunto da natureza não é um binômio fácil para de manter, entretanto será essencial para encontrar modelos sustentáveis para todos. Os efeitos da crise ecológica não só tem consequências para as gerações atuais, mas também para as futuras gerações, o que nos exige uma ética e uma política de responsabilidade4 . 2. 4. Direitos dos seres não humanos Um dos debates subsidiários da ecoética e que, nos últimos anos, adquiriu uma grande repercussão midiática e também política, é o dos supostos direitos dos seres não humanos. Não estamos referindo somente a um determinado subconjunto de mamíferos, mas também ao debate total que inclui também a possibilidade de entender os direitos para além do reino dos mamíferos e dos animais. Este debate, de grande importância antropológica, ética e jurídica, pode fazer sacudir as bases do que, antes, era chamado de direito natural, bem como a noção de sujeito de direito. A crescente sensibilidade social a favor da defesa dos animais, as propostas de grupos animalistas que, a começar de diferentes oradores, exigem respeito e dignidade para os animais, levaram a um debate que apenas começou com relação às fronteiras do direito, aos limites da condição humana. No caso de que se reconheçam direitos aos seres não humanos, do ponto de vista jurídico, isso trará consequências importantes no manejo, na exploração e no sacrifício de animais; portanto, no terreno da pecuária, que tem um peso relevante no conjunto do planeta. 2. 5. As fronteiras entre o humano e o técnico O desenvolvimento exponencial da robótica, da nanotecnologia, da inteligência artificial gera novas dúvidas e perguntas a respeito das fronteiras entre o humano e o técnico. As linha que demarcam essas fronteiras deixaram de ser nítidas e se converteram em traços embaçados. Alguns teóricos defendem a ideia de que a distinção entre o humano e o artefato é puramente gradual ou quantitativa, funcional ou operacional, enquanto outros autores defendem a tese que existe uma diferença qualitativa e importante entre o ser humano e qualquer artefato. A existência de artefatos capazes desenvolver funções humanas com maior precisão e velocidade, provoca um amplo debate. A produção de máquinas com capacidade para sentir prazer e dor e para pensar, também levanta questões sobre se os direitos devem ser estendidos a esses artefatos inteligentes que transcendem os atributos humanos. A colonização tecnológica do mundo da vida já é um fato nas sociedades mais desenvolvidas do planeta e provoca novas questões sobre a alteração que a presença do fator técnico acarreta no cotidiano da vida das pessoas, efeitos esses que podem ser tanto positivos como negativos. 2. 6. Ética gerontológica. A administração pública do cuidado Um dos debates bioéticos do futuro, nos países mais desenvolvidos do mundo, deverá ser o da administração pública dos cuidados às pessoas com maior dependência. Quem irá cuidar desta grande parcela da população? Como os custos serão cobertos? Onde esse cuidado ocorrerá? 4 Cf. Jonas, H. (1995). El principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós. Todas as perspectivas demográficas indicam que a população europeia está envelhecendo a passos largos, o que leva a presumir que, nos próximos cinco anos, haverá uma grande massa de idosos e dependentes que exigirá cuidado de todos os tipos. A reflexão ética sobre o cuidar, sobre a responsabilidade pública no exercício do cuidado em uma estrutura em profundas transformações dos papeis intrafamiliares e o atual sistema axiológico, levantam questões bem fundamentadas sobre como possibilitar e viabilizar economicamente o exercício público desse cuidado. A ética gerontológica, que constitui parte da bioética na medida em que seu campo de reflexão é a vida na etapa da chamada terceira idade, será um grande campo de futuro dentro da bioética, pois deverão ser buscadas formas de resolução deste grande problema para se reconstruir o tácito e necessário pacto intergeracional. O aumento da longevidade e da qualidade de vida das pessoas é, sem dúvida, um sintoma do progresso, entretanto, como consequência disso, também cresce o número de idosos dependentes, tanto do ponto de vista físico como psíquico. O cuidado destas pessoas exige um custo social, econômico e emocional que deve ser desenvolvido com dignidade, mas que o estado social dificilmente pode assumir se as prioridades dos governantes não mudarem durante a distribuição de recursos, o que aumenta significativamente o número de trabalhadores que contribuem com a riqueza econômica para a sociedade. 2. 7. El advento de una nova utopia. O transhumanismo Os teóricos do transhumanismo consideram que a introdução de novas biotecnologias no interior da condição humana, representa uma significativa melhora da qualidade de vida das pessoas e o nascimento de uma nova sociedade, a emergência de um novo tipo de seres que já não poderão ser chamados de humanos em sentido estrito, mas de pós humanos. Partindo da suposição que: o poder tecnológico é de tal magnitude que adquiriu um nível de desenvolvimento que não só pode transformar o ambiente natural para além de limites impensáveis, como também, além disso, tem a capacidade de transformar totalmente a natureza humana de tal modo que ela possa adquirir algumas capacidades e tenha muitas possibilidades jamais conhecidas na história, até agora. Esta abordagem é baseada em uma concepção ilimitada do poder das tecnologias, de sua capacidade de superar os limitas e as vulnerabilidades da condição humana, mas também produzir entes, híbridos, singularidades inteiramente novas no cenário universal. O debate, muito além de olhares extremos, traz em si mesmo uma grande seriedade e possui uma profundidade filosófica, pois o que está em jogo é a ideia de natureza humana e os limites de sua finitude5 . A tecnologia não só transformou os modos de produção e de consumo, de distribuição e de informação, mas também a natureza das realidades física e da condição humana. É um debate filosófico que tem como objetivo delimitar as fronteiras entre o que é legítimo e ilegítimo, o que é possível fazer com a tecnologia e o que, em nenhum caso, pode ser feito. Pertence, em sentido estrito, à filosofia prática ou ética e, particularmente, à ética da tecnologia ou tecnoética. O que está por trás deste debate não é somente o papel da tecnologia em nosso mundo, mas também a própria identidade da pessoa humana e o horizonte em um futuro comum. 5 Cf. Ballesteros, J. y Fernández, E. (Coords.). (2007). Bioética y posthumanismo. Pamplona: ThomsonAranzadi; López, E. y Enrique, J. (2008). Posthumanismo, materialismo y subjetividad. Política y sociedad, 45 (3) 123-137. O pós humanismo se apresenta, sub-repticiamente como uma nova utopia após o declínio das últimas utopias sociais e políticas, que não tem seu epicentro na revolução operária, muito menos nos movimentos coletivos, mas no poder tecnológico. A grande narrativa do pós humanismo aponta para uma sociedade ideal, livre das privações e das dependências da finitude humana, uma espécie de reino imanente de um céu construído a partir das tecnologias da vida, nanotecnologias, tecnologias da informação e comunicação, tudo combinado com robótica e inteligência artificial. Muitos seres humanos, graças a presença de artefatos tecnológicos acoplados em sua natureza, melhoram significativamente sua qualidade de vida. Este é um dado inquestionável em nível científico. Graças a estes mecanismos sofisticados, podem desempenhar funções que, por causa de alguma patologia, não podiam desenvolver e superar alguma deficiência ou carência congênita limitante. Não resta dúvida que esta possibilidade só pode ser valorada positivamente de um ponto de vista ético, desde que este tipo de intervenção não seja exclusiva para uma determinada elite social e quando tais transformações não prejudiquem a pessoa. Este tipo de ingerência tecnológica no mais íntimo das pessoas, as capacita para desenvolver funções, tarefas e capacidades que jamais conseguiriam por seus próprios meios naturais. Basta pensar objetos tão habituais na vida cotidiana como os óculos, as válvulas, os transplantes de órgãos, as próteses e outras muitas incorporações tecnológicas no corpo humano. A biotecnologia não só nos capacita para corrigir disfunções, superar deficiências, curar doenças, prevenir enfermidades; também garante novos poderes, melhora nossas capacidades, amplia nossas possibilidades naturais, nos torna hábeis para alcançar objetivos que, em condições normais, seria impossível. Eis aqui, de fato, o x da questão, o ponto central do debate. O debate tem lugar quando as introduções desses artefatos, não só modificam a funcionalidade do ser humano, mas sua própria essência, a sua natureza mais íntima. Isso pressupõe uma ideia compartilhada da natureza ou da essência humana, algo que é, realmente inexistente no plano filosófico. Alguns consideram que este tipo de aportes tecnológicos vulneram a natureza humana; outros, de modo diverso, pensam que estas transformações não modificam substancialmente a nossa essência. O debate tem um recorte antropológico, pois só revela o que é a natureza humana ou, quando nada, o que está latente nos interlocutores quando se referem a ela, pode esclarecer algo sobre esse debate. Se um ser humano, por conta da introdução de um artefato tecnológico, pode desenvolver capacidades muito superior à que qualquer outro ser humano em condições normais pode desempenhar, o que resulta disso: pode ser considerado um ser humano? Se não for um ser humano, então como deve ser chamado um ser que possui capacidades extraordinárias graças a colonização tecnológica de seu corpo, de seu cérebro ou de seu sistema motor? O transhumanismo abre a possibilidade de diferenciar grupos humanos não em virtude de sua etnia, poder econômico, vinculação social ou crença religiosa, mas a partir da introdução do componente tecnológico que, em caso de chegar a ser uma realidade social, poderia gerar graves discriminações e injustiças. Daí a necessidade de regular juridicamente esta situação, pensando no interesse geral e, principalmente, respeitando o princípio de justiça. Esta regulação não só deve ter um alcance nacional ou continental, mas que deveria ter uma dimensão global ou transnacional por causa da magnitude do problema. Ninguém pode esquecer os aspectos econômicos e comerciais que estão por trás deste debate, além dos interesses das grandes corporações visando a promoção deste tipo de oferta, pois, muito provavelmente, teriam um grande nicho de mercado nos níveis mais ricos da sociedade. As novas tecnologias não só introduzem mudanças, tanto na exterioridade como na interioridade das pessoas. A diferença entre interioridade e exterioridade está presente nos grandes filósofos ocidentais (Santo Agostinho, Teilhard Chardin, Edith Stein, para citar três exemplos). Quando nos referimos à exterioridade, estamos fazendo alusão a essa dimensão de caráter material da pessoa, que opõe resistência, que pode ser percebida através dos sentidos externos. Isto corresponde à corporeidade, com a imagem pública, com a indumentária. Quando nos referimos à interioridade, evocamos todos aqueles atributos e elementos que são parte inerente da pessoa, mas que não percebemos através dos sentidos externos. Estamos referindo àquilo que os filósofos medievais denominaram de as faculdades da alma, como a imaginação, a inteligência, a memória, a vontade, as emoções, os sonhos; todo esse mundo intangível que constitui uma parte substancial de nossa identidade. O desenvolvimento da cirurgia estética, dos implantes, da microcirurgia permite alterar significativamente a exterioridade do ser humano, isto é, a sua corporeidade, sua imagem pública, sua aparência, porém as biotecnologias podem modificar elementos próprios de nossa interioridade, aquilo que é intangível em cada ser humano, sua forma de recordar; porém o conteúdo de suas lembranças podem modificar, permanentemente, todo o seu centro de operações mentais próprias do eu reflexivo, como também sua faculdade de imaginar, de projetar, de calcular e de analisar. Se a tecnologia produz uma mudança na exterioridade e também na interioridade do ser humano, a sua identidade poderá estar completamente afetada, de tal modo que emerge um novo eu em um novo corpo, com uma nova memória e um novo projeto de vida, em definitivo, uma entidade que já não representa uma continuidade com a anterior, agora uma mudança substantiva. Esse debate merece muita atenção, porque não apenas a qualidade de vida está em jogo, mas também a própria essência da condição humana. Não somos seres acabados; somos seres em transição, a caminho, destinados a nos tornar o que ainda não somos, mas seria um erro acreditar que a tecnologia, por mais sofisticada que seja, pode superar a finitude, a vulnerabilidade, ou seja, a condição mortal da pessoa humana. No contexto do pós humanismo prevalece a tese de que a finitude pode ser definitivamente superada através da sofisticação tecnológica. Quando dizemos finitude, estamos nos referindo à ideia de um ser limitado, com alguma fronteira intransponível. É evidente que, por causa do desenvolvimento da inteligência e da tecnologia, esta fronteira pode ser superada, limite esse que, em tempos passados, parecia impossível de ser vencido, porém partimos de uma afirmação muito comum na antropologia filosófica contemporânea: a finitude é uma característica essencial do ser humano. Existe uma constelação de conceitos filosóficos, articulados ao longo do século XX, que se referem a essa característica essencial de nossa condição: labilidade (Paul Ricoeur), vulnerabilidade (Emmanuel Levinas), finitude (Karl Jaspers), indigência (Martin Heidegger), mendicidade (Maria Zambrano), o ser carencial (Gabriel Marcel) ou noção de ser limítrofe (Eugenio Trías). Ainda que não evoquem exatamente o mesmo significado, todos eles têm, como diria Ludwig Wittgenstein, um ar familiar, pois são referências à ideia de um ser frágil e desamparado, dependente e heterônomo. Esta antropologia filosófica se contrapõe ao emergente no pós-humanismo, onde o ser humano é capaz de superar sua condição ontológica através da tecnologia e se tornar algo completamente diferente, inclusive qualitativamente. Esta é a fé ou a crença fundamental, não provada, sobre a qual se ancora o pós humanismo e o pilar de sua utopia futurista. O ser humano é, assim, o arquiteto de uma evolução regulada pela inteligência e realizada por biotecnologias. Pode-se ultrapassar o limite e colocá-lo em outro plano, mas, mesmo assim, ainda existe uma fronteira, um limite. A nosso juízo, o limite da finitude é insuperável porque constitui parte consubstancial do ser humano. A finitude pode ser expressa de muitos modos: por meio da doença, do fracasso, da dor, da angústia, da culpa, da ignorância, da impotência, do desamparo e, claro, através da morte, que é a expressão maior de nossa finitude. Em termos gerais, os principais críticos do pós humanismo e do transhumanismo consideram essencial que se mantenha um debate interdisciplinar permanente sobre as relações entre o natural, o social e o humano, uma vez que esses movimentos significam a transformação desses relacionamentos, como os compreendemos até hoje, o que significa que, em nenhum caso, uma abordagem superficial é válida. 2. 8. O debate da eugenia liberal O último debate que deverá afrontar a bioética e o biodireito em um futuro iminente, não está só no modo de ativar as potencialidades inerentes ao ser humano, mas em criar novas potencialidades com a intervenção da biotecnologia, capacidades essas que não fazem parte da natureza humana enquanto tal. Podemos melhorar nossos futuros filhos antes de nascer? Podemos modificá-los geneticamente através das biotecnologias para que tenham mais capacidades que jamais teriam se respeitarmos seu genótipo? Estamos nos referindo à questão da eugenia liberal. Nesse debate, há uma discussão latente sobre a noção de filiação, de paternidade e de maternidade, mas também é introduzido um tema bastante complexo do ponto de vista bioético que é o estatuto ético e legal do nascituro. Com relação a este ponto, compartilhamos da tese de Jürgen Habermas. Segundo este autor da Teoria da ação comunicativa (1981), a eugenia liberal é uma prática que tende a embaçar as fronteiras entre pessoas e coisas, porque no dia em que os pais considerarem sua prole como um produto moldável para o qual possam desenvolver um design de acordo com seu desejo, exerceriam sobe as criaturas manipuladas geneticamente uma forma de autoridade que poderia afetar os fundamentos somáticos da auto relação espontânea e da liberdade ética de outra pessoa, autoridade que até agora só parecia ter apenas sobre coisas, não sobre pessoas6 . 6 Habermas, J. (2002). El futuro de la naturaleza humana. Barcelona: Paidós, 25.