Eudes Quintino de Oliveira Júnior
18 de jun. de 2022
A tecnologia, ao mesmo tempo em que produz benefícios para melhorar a qualidade de vida das pessoas com resultados altamente expressivos, traz também consigo, graças aos oportunistas e aproveitadores voltados para a prática de atos invasivos, novos caminhos da delinquência virtual.
O próprio crime, assim definido no Código Penal, com o desenvolvimento da tecnologia, vai adquirindo uma dimensão que, muitas vezes, aparentemente, exorbita da conduta narrada no tipo penal. Na realidade, os crimes continuam sendo os mesmos, porém praticados por meio de uma ferramenta que, em princípio, dificulta a investigação policial para se chegar à autoria. O sítio persecutório investigativo, desta feita, de forma até simplificada, ficará centrado no aparelho que proporcionou a prática do fato. A influência do desenvolvimento tecnológico é tamanha que ilícitos que se desenvolvem no ambiente virtual, denominados crimes cibernéticos, vão adquirindo vida própria com a inserção nas novas leis de incriminação que tipificam a utilização dos sistemas da informática. E, sem dúvida, com a instalação definitiva da inteligência artificial, muitos outros ilícitos, até então impensados, serão alinhados ao computador. Será ele, inevitavelmente, o fato gerador de muitas controvérsias legais.
A esse respeito, para comprovar que a Justiça está preparada para a realização de uma hermenêutica também virtual, um estudante de medicina teve a decisão condenatória de 12 anos e 9 meses de reclusão mantida pela 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por ter praticado o delito previsto no artigo 217-A do Código Penal. Isto porque o autor do fato, por meio de uma rede social e de um software de áudio e vídeo, apresentando-se sem roupa a um menino de 10 anos de idade, manteve com ele, durante um razoável período, conversas de cunho sexual, praticando, desta forma, o ilícito de estupro de vulnerável, perpetrado por meio virtual.1
O jejuno em Direito, ao tomar conhecimento da condenação narrada, irá ficar surpreso. Além de não acreditar na possibilidade real do fato e, com toda razão, indagará: como pode vingar uma condenação em crime contra a dignidade sexual sem qualquer contato físico, que é a circunstância imprescindível para a ocorrência de tão grave crime? Não seria exagero afirmar que tal indagação pudesse ser feita também pelo profissional do Direito que não frequenta a área criminal.
É de se observar que o crime de estupro, em sua etimologia, ainda sem a conotação sexual, carregava o significado de ficar imóvel, atônito, estupefato. Passou, posteriormente, a ser o indicativo de uma relação sexual sem o consentimento da vítima, que obrigatoriamente era a mulher. Com a reforma ocorrida no Código Penal,2 os crimes sexuais sofreram profundas alterações em seu conteúdo, desde o capítulo aos quais agora pertencem (Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual), chegando ao núcleo do tipo penal do crime de estupro e inserindo agora o homem como sujeito passivo, assim descrito no artigo 213 do Código Penal: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Nesta nova configuração, com a alternativa constante do tipo penal, passa a prevalecer também como meio de execução do crime o objetivo da satisfação da lasciva do agente, mesmo sem qualquer contato sexual. Com tal fundamentação o Superior Tribunal de Justiça, reconheceu que a mera contemplação, desde que com a finalidade lasciva, já é suficiente para configurar o crime de estupro de vulnerável.3
O fato de o agente se apresentar nu a uma criança, ainda sem condições normais de discernimento para compreender o que estava ocorrendo na tela do computador, assim como a dificuldade para decifrar as falas de cunho sexual, são suficientes para a configuração do crime de estupro de vulnerável. É inquestionável que a criança teve sua dignidade sexual ofendida, até mesmo com a possibilidade de prováveis danos à sua formação.
Na realidade, ocorreu ato libidinoso diverso da conjunção carnal e pode ser considerada até irrelevante a conduta ter sido praticada por meio da internet. A tutela penal, ao remodelar o tipo penal de estupro conferiu a proteção necessária para o vulnerável, no sentido de que, mesmo sem o contato físico, mas desde que haja um meio de comunicação eficiente para traduzir a volição delitiva de satisfação da lasciva, fica caracterizado o delito.
A tecnologia, ao mesmo tempo em que produz benefícios para melhorar a qualidade de vida das pessoas com resultados altamente expressivos, traz também consigo, graças aos oportunistas e aproveitadores voltados para a prática de atos invasivos, novos caminhos da delinquência virtual. Resta aos legisladores, em sua missão de rastrear os cuidados necessários para a proteção da comunidade, a atenção necessária para o combate eficiente às novas categorias de ilícitos que se avizinham.
1https://www.migalhas.com.br/quentes/321107/estudante-de-medicina-e-condenado-por-estupro-virtual-contra-menino-de-10-anos
2 Introduzida pela Lei nº 12.015, de 2009.
3https://www.migalhas.com.br/quentes/243382/stj-estupro-de-vulneravel-pode-ser-caracterizado-mesmo-sem-
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da UNORP, advogado.