Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Antonelli Antônio Moreira Baracat Secanho
O “desafio da rasteira”, a pretexto de se travestir como diversão, essa conduta vem, em verdade, colocar em alto risco a pessoa desafiada.
A espantosa velocidade de propagação de informações, vídeos e demais elementos que podem ser compartilhados pela web, a já conhecida “viralização”, vem causando relevantes alterações nos comportamentos sociais, sobretudo no que diz respeito às crianças e adolescentes na exata definição do artigo 6º da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA).
Nesse sentido, destaca-se a incompreensível “brincadeira” que viralizou entre os estudantes: o desafio do “quebra-crânio”, também conhecido como “desafio da rasteira”. A pretexto de se travestir como diversão, essa conduta vem, em verdade, colocar em alto risco a pessoa desafiada que, desguarnecida e acreditando participar de algo simples, é surpreendida com um golpe (“rasteira”) que a faz dobrar ao chão, sem qualquer apoio, com o risco de, na queda, receber lesões irreversíveis ao crânio e encéfalo, além de sérios danos à coluna vertebral.1
E, desta absurda brincadeira, já se tem conhecimento da morte de uma menina de 16 anos.2
Desta feita, sem prejuízo das questões éticas e morais a respeito, indaga-se: é possível encaixar a conduta dos proponentes do “desafio” em alguma normal penal? Em outras palavras, há subsunção da conduta daqueles a algum tipo penal? Prima facie, não se pode olvidar que o desafio “viralizou” entre crianças e adolescentes que, por expressa determinação constitucional e legal (v.g. artigos 127 da CF/88 e 27 do CP), são inimputáveis.
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro, quanto à inimputabilidade dos menores de 18 anos completos, adotou o sistema biológico: para o caso concreto, reputa-se irrelevante se o sujeito entendia o caráter ilícito do fato que praticava e era capaz de determinar-se de acordo com esse entendimento. Basta, apenas e tão somente, ser menor de 18 anos completos, pois a presunção legal é absoluta (juris et de jure).
Assim sendo, caso se entendesse por alguma responsabilização penal dos agentes menores de idade, aplicar-se-ia, obrigatoriamente, as regras previstas nos artigos 101 e seguintes do ECA, observando a relevante diferenciação para o autor criança e o autor adolescente. Mas, mesmo que o procedimento para responsabilização seja diferenciado, é preciso que a conduta do inimputável encontre amparo legal: o menor de idade não pratica crime, mas sim ato infracional. E este ato infracional precisa, obrigatoriamente, encontrar simetria no Código Penal.
Nesse passo, supondo que o agente menor de idade tenha praticado o “desafio do quebra-crânio” e, desta conduta, tenha ocasionado a morte da vítima, qual artigo do CP é aplicável à hipótese? Lesão corporal seguida de morte ou homicídio? E mais: em caso de homicídio, seria culposo ou doloso? E, caso doloso, seria simples ou qualificado?
Como se vê, a questão é deveras delicada e exige, do intérprete, especial atenção – age quod agis.
A primeira especial dificuldade que se revela ao operador do direito é a identificação do dolo do agente: qual o especial fim de agir de quem causa a morte da vítima após o “desafio do quebra-crânio”? Isso porque, para a responsabilização penal, é necessária, ao menos, a previsibilidade objetiva do resultado, isto é, deve ser possível exigir do agente que o resultado fosse previsível para o homo medius. Neste ponto, parece ser razoável admitir-se que, quem convida a vítima para o “desafio do quebra-crânio” prevê, objetivamente, a ocorrência de um resultado penalmente relevante.
Nada obstante, são as circunstâncias do caso concreto que deverão indicar o caminho interpretativo a ser seguido, já que não é possível ingressar na vontade introspectiva do agente. Então, alguns cenários podem resultar do citado desafio:
Em primeiro lugar, as circunstâncias podem ensejar o reconhecimento do crime de lesão corporal culposa, caso o agente tenha tomado algumas cautelas para implementar o desafio, tais como, escolher um local aberto, sem paredes ou quinas, piso gramado e fofo etc. Ainda que polêmico, o resultado pode ser imputado ao agente em razão da imprudência da conduta (artigo 129, § 6º, do CP).
Em segundo lugar, pode-se concluir que o agente, a depender das características físicas da vítima e do local eleito, assumiu o risco de lesioná-la (dolo eventual). Nesse aspecto, a extensão das lesões é que determinará qual artigo do CP incidirá: lesão corporal leve (art. 129, caput, do CP), grave (art. 129, §1º, CP) ou gravíssima (art. 129, § 2º, do CP).
Mas e se a vítima morrer? Nesse casso, a tipificação da conduta do agente ainda torna-se mais tormentosa. É que, como destacado, a identificação do dolo (e sua intensidade) é tarefa árdua a ser cumprida.
Então, com a morte da vítima, indaga-se: o agente assumiu o risco de matá-la ou, pelas circunstâncias concretas, seria possível afirmar apenas que ele agiu culposamente? Esta distinção é fundamental, pois, se o agente pratica lesão corporal culposa e esta lesão resulta na morte da vítima – morte igualmente culposa, portanto – o agente será responsabilizado apenas e tão somente por homicídio culposo, pois o delito mais leve (lesão) é absorvido pelo mais grave (homicídio).
Caso o agente tenha atuado dolosamente na lesão (dolo direto ou eventual), mas culposamente no homicídio (crime preterdoloso, portanto), teremos a responsabilização pelo crime de lesão corporal seguida de morte (art. 129, §3º, do CP). Nesta hipótese, podemos imaginar o agente que previu e assumiu o risco de lesionar a vítima (ofendida que possui características físicas notadamente inferiores a do(s) agente(s), por exemplo), mas não quis, tampouco previu o risco de produzir o resultado morte.
Com efeito, nos crimes preterdolosos, tem-se o dolo no crime antecedente (lesão) e culpa no resultado agravador (não quis nem previu o risco de produzir o resultado morte). Portanto, é imperioso demonstrar, nesta hipótese, que o agente, mediante a análise das circunstâncias concretas, não poderia prever a morte da vítima.
Por outro lado, caso o agente tenha assumido o risco de matar a vítima (por exemplo, escolheu um local com quinas, paredes, móveis pontiagudos etc), teremos, então, a configuração do dolo eventual do crime de homicídio, devendo o agente responder pelas penas do artigo 121 do CP e, assim, sujeitar-se ao julgamento pelo Tribunal do Júri.
Mas, sem prejuízo do todo acima exposto, é forçoso reconhecer que a questão não possui a exatidão aritmética e, assim, admite inúmeras interpretações que podem, igualmente, incidir no caso concreto.
E, sem dúvida, a maior delas é: o agente que convida a vítima a participar do “desafio quebra-crânio”, pelo próprio apelido da “brincadeira”, não assume, por si só, o risco da produção do resultado? E, em dolo eventual do crime de homicídio, caso a vítima não venha a falecer, poder-se-ia cogitar em tentativa de homicídio?
São situações tênues, que dependem intrinsecamente das circunstâncias concretas em que a conduta é praticada, pois é com base nelas que se identifica o dolo exteriorizado pelo agente.